Revista Montanhas Nº 2 Janeiro de 2014

32 | REVISTA MONTANHAS O montanhismo brasileiro, com seus mais de 100 anos de prática, cunhou ao longo do tempo seus princípios, valores e ética. Du- rante muito tempo, esses valores se esta- beleceram como uma “tradição oral”, ou seja, eram regras não escritas, que passavam de boca a boca, sempre relacionadas à construção da identidade do montanhismo brasileiro. Em 2012 a CBME organizou esse pensamento coletivo em um documento chamado ‘Princípios e Valores do Monta- nhismo Brasileiro’, permitindo que a divulgação desses pila- res e da própria CBME seja feita de maneira mais eficaz. Sua importância, entretanto, extrapola a mera questão de divul- gação. Ele é, antes de mais nada, um instrumento de diretri- zes e políticas tanto para montanhistas, como também para gestores de áreas naturais e outros atores envolvidos com o montanhismo. Dessa maneira, o documento nos permite não apenas co- municar nossos valores, mas também serve para guiar os di- rigentes das entidades de montanhismo em suas decisões e, consequentemente, nas negociações travadas em Unidades de Conservação e outros locais de prática da nossa ativida- de. Como sintetizado no próprio documento, “os princípios ... descritos devem guiar futuras políticas relativas ao uso recreativo de áreas de montanha, seja em Unidades de Con- servação, propriedades privadas ou áreas devolutas (áreas públicas).” É justamente pelos valores de liberdade, autonomia, respon- sabilidade pessoal, acesso responsável, compromisso com o meio-ambiente e opção menos restritiva possível para a re- creação que continuamos a lutar pela auto-regulamentação. Nosso conhecimento e experiência nos legitima como os atores adequados para cunhar nossas próprias regras, como fizemos, por exemplo, com a pluralidade de estilos e o di- reito autoral, dois dos conceitos mais amplamente aceitos mundialmente na escalada. Esses dois conceitos éticos, aliados aos princípios e valores, formam a base do que o montanhismo brasileiro vem bus- cando e conquistando ao longo dos anos. O direito autoral dita que nenhuma via deve ser modificada sem o consen- timento dos conquistadores, evitando assim a “guerra de Os Princípios e Valores do Montanhismo e Estilos de Escalada grampos” que foi tão presente no princípio e meados da década de 90. Ao reconhecer e adotar o princípio do direito autoral, os montanhistas reconhecem também a existência de uma ampla variedade de experiências possíveis em esca- lada e a constatação de que há espaço para todas elas. A isto chamamos “pluralidade de estilos”, princípio pelo qual cada estilo deve ser igualmente respeitado. Infelizmente, ainda hoje em dia, vemos que alguns escala- dores tentam impor seu estilo de preferência sobre uma via e, às vezes, até mesmo sobre toda uma área de escalada. De um modo geral isso é um problema que pode trazer sérias consequências, entre as quais: a criação de restrições que podem engessar a evolução da escalada, a limitação da es- calada a um estilo apenas, a possibilidade de voltar a uma guerra de grampos onde, no “tira e põe” de proteções fixas, quem sai perdendo é a montanha. A imposição de um estilo sobre o outro, independente de quais sejam, através de decisões aleatórias e muitas vezes impulsivas, de modificar o estilo original de uma via, é tanto um enfrentamento ao direito autoral, como também à plu- ralidade de estilos. A diversidade deve ser a norma, pois não sabemos onde o futuro nos levará, seja pelo desenvolvimen- to de novos equipamentos ou a constante quebra de limites na escalada. Cabe uma reflexão sobre a “geração lendária” da década de 80, com expoentes como Marcello Ramos, Alexandre Porte- la, Sérgio Tartari e André Ilha. Essa geração quebrou paradig- mas, abriu caminhos e estabeleceu um novo limite do que era possível na escalada brasileira. Tudo isso, construindo novos estilos e abrindo vias onde antes acreditava-se ser im- possível, sem que os estilos antigos fossem abandonados, mas sim rediscutidos e quase sempre preservados. Finalmente, é necessário respeitar os princípios, valores e os conceitos éticos porque são eles que nos guiam para onde devemos ir. E, acima de tudo, vale lembrar que a quebra desses acordos pode levar a restrições de acesso, seja pela perda de credibilidade da comunidade de montanhistas, seja pela imposição de outras regras por atores externos que não com- preendem a essência de nosso esporte. www.cbme.org.br Texto Kika Bradford

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